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sábado, 19 de janeiro de 2013 0 comentários

Monte-Vista - 1



Era sábado de manhã e Ofélia Terrafino havia decidido não falar com sua mãe pelo resto do dia. Aos gritos, a mulher a acordou cedo e mandou-a aparar a grama do quintal da casa em que viviam. Antes de Ofélia descer para tomar café, sua mãe já havia ido para o Colégio São Francisco, onde fazia trabalhos voluntários para um projeto de recreação à comunidade nos finais de semana. Mas a garota sabia que sua querida mãe, Olga Terrafino, não fazia porque realmente queria ajudar, mas por gostar de bisbilhotar e fofocar a vida dos outros. 
     Seu pai, Antenor Terrafino, administrava um setor de uma empresa local que produzia enchimentos para estofados e derivados. Como todos os finais de semanas dos últimos meses, ele estava trabalhando, alegando que seria bem pago pelo trabalho extra. Sua mulher, apesar de exigente, era ingênua, mas Ofélia não. A verdade era que ninguém suportava passar o final de semana com Olga, muito menos o marido. Ofélia não tinha certeza, mas achava que a fase de ser ranzinza e insatisfeita, chegara mais cedo em sua mãe. 
     Contudo, a relação de Ofélia com Olga era irremediavelmente conturbada. Ela sempre havia sonhado com uma mãe que a levasse ao shopping para fazerem compras, que cozinhassem juntas, que a aconselhasse e fosse sua confidente. Mas não era assim. Olga era implacavelmente egoísta em muitos aspectos e tratava a filha como outra conta que tinha que pagar todo santo mês. Ofélia superou isso aos doze anos de idade, e hoje, com dezesseis, queria estar o mais longe possível daquela mulher horrenda. 
     A relação com seu pai não era, de toda, ruim. Contavam com a sorte para poder ter uma conversa longa, porque simplesmente os horários de suas rotinas não batiam. Talvez, pensava Ofélia, ele era o único motivo de ela ainda estar sob o mesmo teto que Olga. Embora passasse a maior parte do tempo ausente, Antenor era quem apaziguava os conflitos entre a mulher e a filha. 
     Ofélia acreditava ter uma vida normal, quando, aos seis anos de idade, se mudou para Monte-Vista. A cidade ficava no norte do estado de São Paulo e parecia um fim de mundo aos olhos da garota. O lugar era cercado por montanhas forradas de verde e as casas eram padronizadas. As pessoas, além serem ridículas e puxar exageradamente o “r” ao falar, pareciam ter parado no tempo – em todos os sentidos. Dez anos havia se passado e ela ainda não havia se acostumado com toda a, com ela dizia, “cafonice municipal”. A escola era ruim, as pessoas não eram socializáveis, as ruas eram sujas, em suma, tudo era muito rústico para ela. 
     Depois de aparar a grama, Ofélia foi até a cozinha para saciar a sede que o serviço lhe provocara. Em seguida, sentou-se em uma das cadeiras ornamentadas que enfeitavam a fachada da casa, e ficou observando o movimento mórbido da rua. O céu estava azul como miosótis, sem nuvem alguma, adornado com um sol amarelo e quente no canto. Era uma paisagem bonita se olhasse para o horizonte, onde se erguiam montanhas, talvez, nunca escaladas. O pipilar dos pássaros se faziam de música de fundo para a vista. 
    Ofélia Sainte Terrafino era uma garota de valor entre seus colegas de turma. Era tudo que uma garota gordinha com acnes, doenças terminadas em “ite”, asma, falta de coordenação motora, problemas de transpiração nas axilas e de aparelho odontológico queria ser: esbelta, inteligente, bonita, bem relacionada, extrovertida, bem-vestida e que mora em um dos melhores bairros da cidade. E ela adorava tudo isso; adorava seus cabelos dourados que escorriam pelo corpo e seus olhos claros que combinavam com sua pele bronzeada. Fora de sua casa, ela era uma espécie de estrela, como Taylor Momsen ou Demi Lovato. 
     Já fazia quase dez minutos que ela estava naquela cadeira, imóvel, observando a rua. A raiva que estava sentindo pela mãe borbulhava em suas veias. Por que, diabo de peruca loura, você veio me acordar, pensava com eloquência, sabendo que no sábado eu adoro dormir até mais tarde? Em sua humilde opinião de adolescente, acordar cedo para ir ao colégio durante a semana era demais. Como não tinha planos para aquele dia, decidiu que ia fazer uma visita à Melaine, sua suposta melhor amiga, ao invés de ficar assistindo os episódios reprisados de Gossip Girl. Estava passando pelo batente da porta da frente quando ouviu um ruído incomum vindo da rua. Virou-se rapidamente e viu: um conversível, amarelo, passando pela rua. Mas não foi isso que chamou sua atenção, e sim quem o dirigia. Um garoto de cabelos negros que esvoaçavam para trás, de rosto desenhado e cílios grossos. Por um momento, ela achou que estava o vendo em câmera lenta, mas na verdade, o carro que deslizava pela rua em velocidade baixíssima. 
     Flagrado!, pensou com uma voz mental que não era sua, Novo garoto na Cafonice Municipal, bonito e talvez rico. Quem será? 
     O que ela viu foi pouco para justificar a demasiada curiosidade que preencheu seus pensamentos. Subiu para seu quarto correndo e procurou o celular. Pretendia ligar para Melaine, a fim de contar uma novidade quente. 



II 

Marcos Maçãporto ficou aliviado quando colocou o telefone cinza no gancho. Ele trabalhava como garçom no bar e restaurante mais frequentado da cidade. Seu chefe, Nego, como muitos o chamavam, acabara de pedir para trabalhar naquela noite, sob a promessa de pagar o dobro da diária. O movimento seria dobrado, devido a uma importante partida de futebol que seria audiovisualmente transmitida, e muitos passavam ocasiões como esta em lugares que oferecem mordomia, álcool e muita farra. 
     Não era pelo dinheiro extra que Marcos estava satisfeito, tampouco pela festa que aconteceria, e sim pelo fato de que não iria passar a noite toda sozinho em seu apartamento desmanteladamente decorado. Acabara de sair de um relacionamento, que estava prestes a completar quatro anos, e ainda não havia se acostumado a dormir sozinho. Nas últimas três noites ele passou, de olhos abertos, por um pesadelo. Não suportava a ideia de estar sozinho e de seu namoro quase perfeito ter acabado. Fora descartado como uma simples garrafa de vodca. Rolara pela cama sem, de maneira alguma, encontrar uma posição confortável para pegar no sono. A luz da rua projetada no teto mofado do seu pequeno quarto o fazia imaginar formas assustadoras. Marcos sabia – como sabia que sua cafeteira havia queimado – que tudo isso era muito pueril para um marmanjo de 25 anos como ele. 
     Mas era verdade, ele ainda não havia digerido aquela informação. Com quem passaria seus preciosos finais de semana de folga? Como daria as caras em eventos sociais desacompanhado? Só de imaginar entrando em uma casa noturna qualquer sem o anel de compromisso no dedo fazia seu estômago se contorcer dolorosamente. Marcos nem havia mudado os status de relacionamento em seu perfil no Facebook. Estava lá, em sua linha do tempo, “Em um relacionamento sério com–“, como a única recordação “concreta” do que fora uma união marital feliz. 
    Quando terminou de almoçar, Marcos foi ao banheiro e, depois de urinar e lavar as mãos, ficou contemplando seu reflexo no espelho acima do encardido lavabo de porcelana. Não fazia a barba desde o dia em que uma parte do guarda-roupa ficou vazia, tornando-se um lugar para que aranhas pudessem fazer de moradia. Era como um gramado aparado: ralo e áspero. Desde os seus dezesseis anos – quando os pelos pubianos do seu corpo começaram a nascer mais espessos –, nunca deixara um pelo se quer aparecer em seu rosto. Agora, pensava que estava se tornando um Dumbledore tingido de preto. 
     Ele examinou os próprios cabelos: eram negros e as pontas batiam nos ombros. Estava na hora de cortá-los, afinal, ninguém mais pedia para deixá-los cumpridos porque achava sexy. O cabelo longo incomodava e atrapalhava-o em sua rotina diária. Marcos não precisava mais se sacrificar por amor, e, no entanto, não era isso que pensava. Decidiu, depois de se lembrar como eles eram lascivamente puxados e afagados nos momentos mais quentes da noite, que não iria cortá-los. Refrescou o rosto com um pouco de água e se dirigiu ao quarto quadrilátero, cujo dois terços de sua área era ocupada por uma cama muito ampla para o novo solteiro de Monte-Vista. 
     Marcos adormeceu, com o cabelo, braços e pernas esparramados na superfície macia do colchão. Em pouco mais de cinco horas o alarme do seu celular retrógrado dispararia em uma melodia irritante, a fim de acordá-lo a tempo suficiente para poder se arrumar antes de ir trabalhar.



III 

"Então, o que achou da vizinhança, filhão? É o melhor bairro da cidade."
     Daniel Mayson não queria dizer ao seu pai que, desde que pisara naquela cidade, não encontrara nada para gostar. Acabara de sair de seu novo carro, e o pai, Henzo Mayson, o esperava animadíssimo na entrada da garagem – um homem gordo e alto, tinha os cabelos grisalhos sempre bem penteados e andava de roupa social, até nos finais de semana. 
     Havia exatamente um dia que, junto de seu pai, mãe e sua irmã, havia chegado a Monte-Vista. Daniel não estava nem um pouco satisfeito com a mudança repentina. Antes, moravam em uma megalópole no sul do estado e agora, estavam na roça, como pensava ele. Foi seu pai quem começou com a história toda e sua mãe, Amanda Mayson, o apoiou como toda boa esposa deve fazer quando o marido decide fazer alguma coisa que não seja insana. Daniel odiou a ideia e pelo menos Daniela o apoiou. Mas não foi porque tinham um grande elo fraternal, mas porque ela também não queria deixar uma vida para trás. 
     O mais interessante nessa história, foi a desculpa que o Sr. Mayson embolsou para que tudo isso acontecesse. Alegou, com veemência, que por conta da inflação, deveria administrar sua empresa – que ficava justamente em Monte-Vista – de perto; também por suspeitar de desvio de dinheiro. Mas todos na família sabiam que ele estava cansado de ser mais um ricaço em meio a tantos que existiam em São Paulo; e porque era ambicioso e não se contentava com pouco. Em Monte-Vista, tendo a empresa mais rica da cidade, seria um superior, um homem influente, que poderia interferir em questões públicas para que agissem em seu favor. Henzo Mayson tinha a cabeça de um grande chefe de máfia. 
     "Legal" respondeu Daniel ao pai, deixando claro que havia odiado o bairro. 
    "E o que achou do carro?" perguntou Henzo, que manteve o entusiasmo, como se o filho estivesse pulando de alegria. 
     Daniel sabia que Henzo havia lhe dado aquela BMW M3 Conversível amarela como um suborno, para que se animasse com a mudança. Mas não deu muito certo. Embora a família fosse rica, ele era um garoto simples. Queria apenas tirar boas notas no colégio e seguir uma carreira como atleta. Ao contrário da maioria dos garotos da sua idade, ele não se importava com carros, festas, maconha, sexo, bebidas nem pornografia. Tinha planos mais honestos
     Henzo queria que ele, mais tarde, assumisse sua empresa. Isso era muito comum acontecer quando uma família tinha uma velha empresa que foi passando de geração em geração, cada vez mais rica e velha. Para Daniel, isso não era nem um pouco comum, ele queria viajar, conhecer outros países e novas pessoas. Não se imaginava dentro de um escritório, estressado, fazendo a vontade do seu pai. Era como jogar seu talento na lata de lixo. 
     "Pai, eu nem tenho idade para dirigir" respondeu, enquanto atravessavam a garagem em direção à porta que os levaria para o interior da mansão.  "Tenho apenas dezesseis anos, ainda levará muito tempo para eu tirar minha habilitação."
     "Mas o quê que há, filho?" começou Henzo com seu tom de voz na defensiva. Estavam subindo uma escada que levava para a área social da casa. "Foi só uma voltinha. Isso não trará problemas a ninguém."
     Henzo havia ensinado Daniel a dirigir assim que adquiriu pernas grandes o suficiente para alcançar os pedais do carro. Foi apenas um lazer de final de semana entre pai e filho. Daniel adorava dirigir, e havia gostado do carro, mas isso não o faria mudar de ideia sobre a cidade. 
     "O carro é legal" ele admitiu. "Mas eu não vou ficar andando com ele por aí."
   Estavam atravessando um pequeno corredor de paredes brancas enfeitadas com esquisitas pinturas emolduradas. 
     "Você é quem sabe, Dan. O carro é todo seu." respondeu o pai quando finalmente chegaram à sala de estar. 
    Encontraram Amanda sentada no sofá branco. Com seus cabelos negros – de quem Daniel puxou – sobre um rosto bondoso, trajando um vestido de seda coral. Pela idade que tinha, Amanda era uma mulher muito bem conservada. Parecia ser, pelo menos, dez anos mais jovem que o marido. 
     Henzo subiu as escadas que ficava em um extremo da sala e Daniel se sentou ao lado da mãe no espaçoso sofá. 
     "Mãe, eu odeio quando ele faz isso" reclamou Daniel para ela. "Ainda dá tempo de convencermos ele a voltar para nossa antiga vida."
    "Se contente, querido" consolou-o Amanda, afagando os cabelos do garoto. "É definitivo. Não quero ter que discutir isso com você outra vez. Não irá adiantar tentar persuadi-lo, seu pai não mudará de ideia. E eu não estou a fim de fazer outra viagem."
     Daniel fez uma cara feia. 
  "Mãe, e onde eu vou treinar? Eu quero ser atleta. Não poderei ser isso aqui nesse fim de mundo" reclamou ele, suplício. "Não vou trabalhar na empresa idiota do papai."
     Amanda ignorou o comentário sobre a empresa do marido. 
     "Eu andei pesquisando e descobri que aqui em Monte-Vista tem um centro de esportes" começou ela.  "Fica do outro lado da cidade, mas você pode pegar um táxi. Fiquei sabendo que a equipe da Ginástica Olímpica está precisando de bons membros. Daniel, você sabe que é bom e pode entrar para dar uma forcinha. E é sempre bom se destacar."
     "Mãe, não será como antes" respondeu ele, desfazendo-se dos “esforços” de sua mãe. 
   "É claro que não será como antes" Amanda revirou os olhos e deu um leve tapinha no queixo desenhado de Daniel. "Nada será como antes, é uma vida nova."
     Ela não conseguia enganar ninguém com essa falsa animação e Daniel via isso claramente. Amanda também não estava satisfeita com essa “vida nova”, porque na antiga cidade, ela havia se apegado a muitas pessoas e lugares. Amanda era uma mulher muito moderna para aquela cidade e Daniel não soube dizer por que, exatamente, ela não se opôs à mudança. 
     "E os meus amigos?" perguntou Daniel, sabendo a resposta. 
     Amanda suspirou, deixando aparentar, por um momento, o quanto estava cansada de fingir satisfação. 
     "Você vai arranjar novos."



IV 

Era o horário de almoço de Tatiana Bonestone, que estava sentada, inquieta, no refeitório executivo da Mayson Enchimentos & Cia. O lugar, assim como a empresa toda, estava um pouco vazio. Mas mesmo assim, ela ainda podia sentir os poucos homens lançarem-lhe olhares pervertidos. Tatiana sabia exatamente que tipos de pensamentos tinham quando a olhavam e tentava imaginar se nessas cenas imaginárias ela estava vestida de enfermeira ingênua ou policial injusta. Extremamente irritada, pegou sua bolsa e saiu do refeitório, largando a bandeja intocada sobre a mesa. 
     Tatiana, de fato, era uma mulher atraente. Seu corpo tinha curvas nos lugares certos e seus seios eram medianamente fartos, fazendo com que suas roupinhas sociais de trabalho ficassem sensualmente justas. Seu cabelo era tingido de ruivo-escuro, que contrastava bem com sua pele bege. Não precisava de muita maquiagem no rosto, pois tinha uma beleza natural e singular. E como toda mulher, sentia-se poderosa sobre sapatos com saltos altos. 
     Quando chegou à pequena antessala, seu local de trabalho, ainda estava irritada. Não era para estar assim. Havia feito amor com seu marido na noite anterior e  acordou de bom humor. Demétrio Bonestone fora a melhor coisa que aconteceu em sua vida. Se não tivesse se casado com ele, ainda seria apenas uma caipira simplória e invisível naquela cidade ocultada por montanhas. E foi tudo graças à sua beleza e competência em tudo que faz quando tem vontade. 
     Demétrio fora, na época em que ainda eram apenas colegas de trabalho, um dos homens mais cobiçados do setor onde trabalhavam – na mesma empresa que estava agora. Ganhou duas rivais perigosas quando chegou ao Setor 52 da Mayson Enchimentos & Cia exibindo um brilhante anel de seu noivado com o belo e viril Demétrio. Estavam no oitavo ano de casamento e a relação, além de mais intima, continuava como no primeiro ano. Ele elevou-se dentro da empresa e tinha um ótimo salário. Tatiana só trabalhava para manter seu guarda-roupa sempre bem atualizado e abastecido de roupas caras. O casal tinha construído uma vida invejável para muitos em Monte-Vista. 
     Naquele dia, seu humor estava alterado por ter sido obrigada a trabalhar no final de semana. Tatiana era secretária de Antenor Terrafino, chefe administrativo do Setor 52 – moldes para enchimentos. Seu trabalho naquele dia era servir café e levar arquivos para seu querido chefe. Não era como o trabalho no meio da semana. Era muito mais tedioso. Ela poderia estar em casa assistindo filmes com seu marido ou gastando dinheiro em uma loja de roupas. 
     Sentou-se em sua cadeira – cujo enchimento sob o couro fora produzido pela própria empresa –, cruzou as penas e começou a tamborilar os dedos na superfície da mesa. Hoje é sábado e eu não deveria estar aqui, pensava com exasperação, se o Sr. Terrafino quer adiantar seu trabalho, que faça sozinho, porque eu não quero adiantar o meu. Em meio aos seus pensamentos, lembrou-se que, naquela noite, Demétrio iria ao bar Olho da Cobra assistir uma partida de futebol com os amigos. Ele não pode ir sozinho, terá um monte de sirigaitas carentes prontas para dar o bote. Ele não vai sem mim! 
     O telefone sobre sua mesa tocou e ela atendeu imediatamente, apertando o fone com toda força que tinha. 
     "Pronto, Sr. Terrafino" disse com sua voz simpática de secretária atenciosa. "Claro que posso... Com açúcar ou adoçante? Tudo bem."
     Seu querido chefe havia lhe pedido um café. Ela levantou decidida e foi até a máquina de café no corredor. Preparou uma bandeja convidativa, com biscoitinhos de cortesia. Atravessou a antessala e bateu na porta que indicava em letras grandes: Antenor Terrafino
     "Entre" disse a voz abafada do chefe administrativo do Setor 52. 
     Tatiana girou a maçaneta com a mão livre e entrou na ampla sala executiva e bem iluminada. As paredes eram cobertas por estantes com livros, fragmentos de enchimentos em vidros e algumas fotografias em porta-retratos. A mesa do Sr. Terrafino ficava próxima à janela, do modo em que ele ficava de costas para o céu lá fora. Anternor, na opinião de Tatiana, era mais bonito que seu marido. Tinha o cabelo castanho-claro e um rosto ainda jovem, como se tivesse vinte e poucos anos. Ela sabia que ele malhava, a camisa marcava seus músculos quando ele fazia movimentos bruscos. Muito ao contrário de Demétrio que, se continuasse a se alimentar irregularmente, em poucos anos ele teria o corpo do Homer Simpson. 
     Ela caminhou até a ampla mesa e deixou a bandeja em um espaço desocupado. 
     "Obrigado, Taty" agradeceu ele sem tirar os olhos da tela do computador portátil. Ela odiava que ele a chamasse assim. Demétrio usava esse apelido em seus momentos íntimos mais prazerosos (Isso! Vai, Taty!). 
    Ela respirou fundo. 
    "Por nada, Sr. Terrafino" disse sorrindo, esticando exageradamente seus lábios carnudos. "Espero que arranje uma secretária que seja tão dedicada assim, porque eu me demito."




As paredes do quarto de Cassilda Gonçalo eram cobertas por pôsteres de astros e estrelas do pop, como se fosse uma pequena galeria. Uma coleção que levou anos para crescer. As suas favoritas eram as do Michael Jackson – que descanse em paz – em suas famosas posições. Havia muitos CDs e livros que gostava numa estante. Naquele momento, acabara de começar a tocar “Pulsos”, de Pitty. 
      E um dia se atreveu a olhar pro alto. Tinha o céu, mas não era azul, entoava a voz feminina do rádio, acompanhada por uma batida de rock envolvente. 
     Estava a apenas de sutiã e calcinha – um conjunto rosa –, sendo observada pelo seu namorado Igor Velatiner. Estava prestes a subir na pequena balança que comprara no mês passado, e Igor estava lá para apoiá-la. Começaram a namorar quando tinham catorze anos, e agora, com dezesseis, já tinham atingido um nível de intimidade avançado. Igor piscou para ela, incentivando-a a ir em frente. 
     No cansaço de tentar, quis desistir. Se é coragem eu não sei.
    Cassilda ficou de costas para o namorado e subiu na balança, olhando para baixo. Afastou os cabelos quimicamente alisados do rosto e os prendeu atrás da orelha. Ficou contemplando a telinha digital um pouco adiante de seus pés, que indicava o peso. Ah, droga, setenta e seis?! Ela não acreditava. Desceu da balança e se dirigiu ao espelho, alto e largo o suficiente para conseguir seu corpo inteiro, e Igor, observando-a apreensivo, sentado em sua cama de lençóis vermelho. Cassilda era uma garota bonita, um pouco forte, e nem parecia ter aquele peso. Tinha um corpo atlético, coxas grossas. Ela não estava nem um pouco satisfeita com seu peso; todo o sacrifício que havia feito havia sido em vão. 
     Tenta achar que não é assim tão mau, exercita a paciência. Guarda os pulsos pro final. Saída de emergência.
     A sua vida era como ser uma passageira em um trem passando por um longo túnel escuro: todos sabiam que ela estava lá, mas ninguém, de fato, a via. Não sabia se era por ser negra ou por não ser carismática como, por exemplo, Ofélia Terrafino, uma garota popular do colégio onde estudava – Colégio São Francisco. (Particularmente, Cassilda achava que “Ofélia” era nome para se dar a vacas. A vaquinha Ofélia e sua amiga galinha Teresa.) Era uma garota estudiosa, tinha boas notas, mas não se destacava. Já havia tentando praticar alguns esportes, mas não tinha habilidade para nenhum. 
     Ela morava em Monte-Vista desde que nasceu e, secretamente, adorava a cidade. As pessoas que eram incomuns. Eram muito seletivas. Muitas vezes, ela pensava que sua pequena revolta com a sociedade se devia ao fato de ser negra. A injustiça à raça estava no mundo inteiro, e um negro insatisfeito com isso não era novidade para ninguém. Mas ela achava que era muito injustiçada. Cassilda tinha seus pais como o exemplo de sua vida. Conseguiram superar o racismo e a hipocrisia das pessoas. Tornaram-se bem-sucedidos, e muito influentes na cidade. Moravam em um dos melhores bairros de Monte-Vista: Casa Verde – que só ficava atrás do Ermito Plazz, o dos ricaços. Ela sabia que teria que superar a injustiça da sociedade também. 
      Saída de emergência!
    Mas agora, ela estava preocupada com seu corpo. Já sofria por ser negra e não queria sofrer por ser gorda também. Era tudo que a sociedade reprimia. Não podia, de jeito nenhum! As coisas se tornariam mais difíceis. E seu namorado, como ficaria ao lado de uma negra gorda? Igor era perfeito aos seus olhos; tinha aparência de um autêntico alemão – pele e olhos claros, cabelos louros. Quando começaram a se encontrar às escondidas, ela nem acreditava que estava tendo um caso com dos garotos mais bonitos do colégio. Ofélia Terrafino ficara boquiaberta quando a vira de mãos dadas com Igor Velatiner. Era do conhecimento geral que a famosa Ofélia já havia cobiçado o garoto, porque o considerava um dos garotos mais bonitos daquele colégio. 
     Igor não era só um rostinho bonito e popular. Era atleta, era da equipe principal de ginástica olímpica da cidade. Seu corpo estava em desenvolvimento, mas tinhas músculos definidos; era forte o suficiente para que as camisetas ficassem justas. Cassilda achava que iria enlouquecer quando o via usando camisetas cavadas. Por isso, ela não queria ser feia, gorda e ter problemas com transpiração nas axilas. Achava tinha que ser esbelta como Ofélia Terrafino. Mas com aquele peso? 
      E um dia desistiu., quis terminar. Só mais um gole e duas linhas horizontais.
     Cassilda olhava apreensiva para seu reflexo no espelho. Igor continuava a observá-la, meio preocupado. Então, com a velocidade de um ginasta, ele correu até ela agarrou-a por trás, beijando seu pescoço. 
     "Por que está tão preocupada?" perguntou ele, entrelaçando as mãos na cintura de Cassilda. Ela podia sentir seu corpo torneado pressionando suas costas. "É o seu peso? Você está ótima."
     Preto e branco. Cassilda olhava atentamente o espelho: um belo casal, mas a garota gorda estava infeliz. Parecia um relacionamento “se”. Se ela engordasse um quilo a mais, ele romperia a relação; se ela não atingisse o peso ideal; se ela continuasse feia... Se, se, se... 
       Sem a menor pressa, calculadamente. Depois do erro a redenção.
     "Não é meu peso" respondeu ela, depois de uma pausa considerável. "É nosso namoro. "
       Tenta achar que não é assim tão mal, exercita a paciência. 
     "Nosso namoro?" perguntou Igor, franzindo a sobrancelhas quase invisíveis de tão claras. 
      Guarde os pulsos pro final.
     "É," respondeu ela. "Ele acaba aqui."
      Saída de emergência!
quinta-feira, 17 de janeiro de 2013 0 comentários

{VI} Romeu & Violeta - Triunfo (Parte 1)




– Até mais! – disse ao meu pai, Rafael, fechando a porta do arranhado Volkswagen GTI MK2 verde dele. Achei muita generosidade de sua parte se atrasar no trabalho para me trazer ao colégio hoje – porque eu estava atrasado e o colégio, pelo menos, era uma prioridade maior para ele. 
    O carro dele não era um dos últimos modelos que geralmente estacionavam na frente do colégio para descarregar e carregar alunos “bem de vida”. Não tinha condições financeiras de ter um conversível. É claro que não passávamos fome; Rafael e Carmen Patarra conseguiam o necessário e mais um pouco para nós. Eles cumpriam todas as minhas exigências de “adolescente simples”. Vestiam-me bem, me davam bons aparelhos eletrônicos – alguns até desnecessários, como o Play Station 2 que não uso mais – e compravam comida das melhores marcas, se é que me entende. Isso não significava que éramos da “classe média”, como são os dos carrões que mais pareciam naves-espaciais. 
    Passei pelo portão principal do colégio com minha habitual e pesada mochila nos ombros – por causa dos livros extras que eu sentia a necessidade de carregar para uma emergência qualquer. Estava um tanto frio, porque o sol ainda estava nascendo. Mas eu sabia que o dia seria quente
    O pessoal que entrava no colégio parecia decididamente preocupado tanto com a própria aparência quanto a dos outros. Eu sabia como se sentiam, porque isso era o tipo de coisa que se via em seriado adolescente na televisão: prontos para serem avaliados, e assim, se ajustar devidamente em uma das várias posições “sociais colegial”. Eu não ligava para isso. Eu era o tipo de garoto transparente, que apenas observava, e que aparecia quando precisava aparecer, ou quando ocorria algum... deslize patético em público. Ninguém se importava com minha jeans com casuais rasgos customizados, minhas camisetas largas com estampa de bandas de rock e com meu All Star surrado – por preferência. Eu gostava disso. Era bom para mim e para meus (poucos) amigos. 
    Hoje eu havia decidido não falar com Violeta. Todas as vezes que pretendia fazer isso, meus planos eram frustrados por coisas fúteis da minha rotina no colégio. Mas não era uma derrota, na verdade, era uma estratégia. As coisas aconteceriam normalmente e na oportunidade certa, eu atacaria. Parecia que eu estava brincando com o destino, desafiando-o e era ridículo. Mas foi o único meio que encontrei. Era isso ou sair correndo para a sala dela pra tentar bater um papo e fazer papel de louco ou idiota. Eu não era um idiota, louco talvez. 
    Caminhei lentamente até um dos bancos largos do pátio coberto, sem expressão alguma em meu rosto e sentei-me. Passei a mão no meu preto e volumoso cabelo cacheado – como se fosse dar um pequeno ajuste no penteado que havia trabalhado durante horas, um costume idiota – e fiquei vigiando o portão principal, esperando Christian dar as caras. 
    Ele andava muito estranho nos últimos dias. Estava mais que obcecado pelo basquete. No dia anterior, depois do intervalo eu não o encontrei. Não o vi nas aulas nem na saída do colégio. Christian não tinha uma das melhores notas da turma, porém não era de sua natureza faltar às aulas. O que será que estava acontecendo? 
    Confesso que nos últimos dias eu tinha sido meio egoísta. Quando não estava estudando, estava pensando em Violeta e esquecendo-me do meu amigo. Tratando-o como um adereço antigo em minha vida. Tudo bem, somos garotos, mas entendemos o valor da amizade, por mais másculos e frios que sejamos. Christian era meu amigo de infância. Nossos pais se conheciam e era o tipo de adultos que fazem churrascos juntos no fim de semana. Rafael e o pai dele se conheceram no trabalho antes mesmo de nascermos. Os casais ficaram grávidos na mesma época e isso fez com que criassem laços de amizade. Não poderia ter acontecido o contrário, porque eles deviam falar no assunto o tempo todo durante o expediente. Depois que as crianças nasceram, os tais churrascos começaram acontecer. Éramos amigos até então. 
    A adolescência muda um pouco as coisas. Quero dizer, começamos a ser mais independente e criar gostos distintos. Ele preferiu o basquete e eu a biblioteca. Não que eu odiasse esporte, mas eu não tinha um corpo nem coordenação motora para praticar nenhum deles. Esse era um dos vários motivos pelo quais as pessoas me consideravam esquisito. Mas eu fazia atividades físicas, o que me fazia parecer saudável. Será que carregar livros de um lado para outro conta como um esporte? Uma coisa eu garanto, sedentário eu não era. 
    Christian entrou com suas duas mochilas – a dos livros e a do basquete, a menor – nos ombros. Fiquei feliz em vê-lo e em saber que estava bem. Pelo menos era o que parecia. Mas tudo isso desapareceu quando vi quem o acompanhava, conversando distraidamente com risadinhas ocasionais. Paulo. Um garoto detestável que eu tinha certeza que batia cartão para me atormentar no jardim de infância. Christian também o odiava, até entrar no time de basquete do qual Paulo era capitão. 
    Eu achava que a relação entre os dois se limitava nas linhas brancas que marcavam a quadra de basquete. Tinha uma exceção no vestiário, talvez. Nada muito íntimo. Bem, não a nada mais íntimo do que se trocar todos os dias na frente de seus colegas. Mas isso não queria dizer nada. Existiam mais outros jogadores para distraí-los um do outro. 
    Quando Christian e Paulo chegaram ao pátio, ambos seguiram para direções diferentes, depois de uma breve despedida de “até daqui a pouco”. Christian me avistou sem querer e seguiu em minha direção. A alegria que estava em seu rosto quando atravessou o portão havia sumido. Estava sério, como se o treinador tivesse acabado de chamar sua atenção. 
    – Como foi ontem com a garota? – disse ele em guisa de bom dia, sentando do meu lado, um pouco mais distante do que o limite de espaço entre homens permitia. 
    Ele parecia saber que deu tudo errado com meu plano de falar Violeta no dia anterior. 
    – Como é? – perguntei, tentando parecer atônito. Rapidamente fiquei tão sério quanto ele. – Onde você esteve ontem depois do intervalo? Fiquei te esperando para a aula de química, o que me fez chegar atrasado e perder a chamada. 
    – Uau!, uma falta fará você morrer – zombou ele, sem alterar a expressão do rosto. – Tive que resolver um assunto com a galera do basquete. 
    Um assunto? Christian não era muito ligado ao time de basquete quando não estava treinando ou jogando. Era como ir ao banheiro, você faz o tem que fazer e sai. Só volta quando realmente precisa. Eu comecei a sentir uma leve pontada de culpa. 
    – O que foram resolver? – disse com veemência na última palavra. Não houve resposta, ele tentava parecer distraído com o movimento ao nosso redor. Então eu disse um pouco exasperado: – Eu não consegui falar com Violeta. Parece que isso é o tipo de coisa que não posso incluir na minha rotina, nem como um evento. 
    – É mesmo? – disse Christian com sarcasmo e olhou para mim. Havia uma indiferença palpável em seus olhos castanhos escuros. – Você anda tão... 
    – Romeu Patarra! 
    Ele começou a dizer alguma coisa com um tom de sermão, mas foi interrompido pela Sra. Rodrigues, que me chamou das primícias do corredor principal. Uma de suas mãos segurava uma pilha considerável de papéis e a outra ajeitava seu cabelo ondulado e grosseiramente pintado de rubi para encobrir a cor branca que a idade lhe proporcionara. Eu olhei para Christian com a expressão de “já volto, a velha está me chamando”, coloquei minha mochila nos ombros e fui até ela, deixando meu melhor amigo para trás – injustamente irritado. Não podia fazer nada, pois eu não costumava desobedecer as ordens de um professor. 
    Atravessei o pátio desviando das pessoas em transitividade até a Sra. Rodrigues. Ela parecia impaciente. Eu não estava nada satisfeito em vê-la. Teria as primeiras duas aulas com ela e o tempo com ela em sala de aula já era excessivo. Imaginei que ela me chamaria para ajudá-la a corrigir provas. História não era uma das minhas matérias favoritas. Parei na frente dela, esperando minha sentença. 
    – Bom dia, Romeu. – cumprimentou ela com sua voz carcomida. Sua mão livre agora levava os óculos presos por um cordão no pescoço até seu rosto. Pergunte-me quantos quilos pesavam cada lente daquela, como toda vez fazia quando a via. 
    – Bom di... – comecei, mas ela se apressou: 
    – Preciso de alguns livros de História que estão perdidos na biblioteca para a terceira aula. – ela não era uma mulher gorda, mas velha. Enquanto articulava sua mandíbula, a papa enrugada que pendia de seu queixo se agitava comicamente. – Preciso de vinte e cinco destes: – ela tirou um pedaço de papel que foi brutamente rasgado do alto de sua pilha branca. Nele estava escrito com uma caligrafia tremida: Um Novo Olhar: História, Vol. 2. – Você ainda é o ajudante do bibliotecário Edmundo, não é? 
    Sorte a dela que eu ainda era o ajudante, pensei, porque se não fosse mais, xingaria-a pela dúvida, depois de pedir o “favor”. Velha bajuladora do Edmundo. 
    – Sou – respondi inocente diante dos meus pensamentos malvados. Agarrei o papel com timidez e coloquei-o no bolso de trás da minha calça jeans. – Mas por que não pede a ele? Pelo que eu sei, tenho aula daqui a pouco e é com a senhora. – rezei para que ela relevasse o sarcasmo involuntário na minha voz. 
     – Por isso mesmo, querido. Você estará dispensado das duas aulas para fazer esse servicinho para mim. – Afinal, ela não era tão caduca quanto as pessoas diziam. – Você não estará perdendo nada importante, porque você e um bom aluno e ajudante do bibliotecário. Que sorte! 
    Que sorte!, repeti a frase ambígua em pensamento. Eu não sabia se a sorte era minha, por ser dispensado de duas aulas tediosas ou por ela ter encontrado um empregado disponível. Então, antes que eu fizesse algum movimento, ela respondeu minha pergunta, mostrando mais uma vez que de ainda tinha um bom raciocínio. 
    – Não mando Edmundo porque ele é e está ocupado demais com assuntos mais importantes da biblioteca. 
    Pobre Edmundo, pensei, tão ocupado com as garotas excêntricas e aparvalhadas que parecem gostar tanto de livros. Já havia passado da hora de eu aceitar que ele era o queridinho do colégio, porque era “O Bibliotecário”. 
     – Tudo bem, eu procuro e os livros e os levo até você antes do intervalo – eu disse. 
    – Sei que fará. – disse ela, em tom de ordem e certeza. Eu não era obrigado a fazer o que ela podia, e tinha o direito de não fazer. Será que ela não entendia que as épocas eram outras? Mas como sempre, eu murcharia as orelhas e faria. 
    O sinal soou audivelmente como de costume acima de nossas cabeças. 
    – Te vejo às nove e meia – disse ela enquanto mergulhava no mar de alunos que se estendia pelo corredor principal. – Os livros serão de importante uso para... 
    A voz dela foi abafada pelo bafafá de alunos. Virei-me para pátio para ver se Christian ainda estava sentado, talvez me esperando. Depois de erguer-me nas pontas dos pés, pude ver apenas o vazio do largo banco de madeira que estávamos sentados. Tomei coragem e adentrei no corredor em direção ao meu local de trabalho. 
    Encontrei a biblioteca quase totalmente vazia. De pessoas, claro. Ela continuava a abrigar livros em excesso, aponto de não caber nas prateleiras, formando pilhas e pilhas no chão. Isso era o tipo de coisa que não facilitava o trabalho de um bibliotecário, porque não há sessões para os livros que estavam jogados no chão. Apenas Edmundo estava lá, atrás do balcão de madeira polida, absorto em seu Samsung Galaxy 5. Contornei o balcão e coloquei minha mochila no canto habitual. 
    – E aí? – eu disse, sentando em um banco de três pernas do balconista, próximo a Edmundo. 
    – Como vai? – disse Edmundo, sem tirar os olhos do aparelho celular (e quase computador). 
    A família de Edmundo era do tipo das dos carros que pareciam naves espaciais. Ele vivia reclamando do velho computador da biblioteca e de sua lentidão. Perguntava-me por que ele não doava um novo para escola, afinal... 
    – Bem – respondi, tentando parecer distraído. – Tudo legal com você? 
    Ele olhou para mim. Eu – e nem ninguém – podia negar que Edmundo era um cara... bem, um cara bonito. Geralmente os homens não admitem isso da boca para fora, mas reconhecem quando outro é bonito. Sentem inveja ou admiram como as mulheres costumam fazer. A diferença é que guardamos isso para nós até a morte. Edmundo era o tipo de garoto que quase toda menina queria ter como namorado e como quase todo garoto feio – como eu era – queria ser. 
    – Tudo legal – ele afirmou, enquanto guardava o celular no bolso da calça jeans. Seus olhos de cor mel meio-esverdeados me fitavam com estranha apreensão. Eu desviei os meus para a superfície rutilante do balcão, grotescamente constrangido. – O que está fazendo aqui tão cedo? 
     – Eu tenho um “ servicinho” para fazer – respondi revirando os olhos. Minha voz saiu mais firme do que eu pretendia que saísse. – À mando as Sr. Rodrigues. 
     – Tenho certeza que é sobre alguns livros... 
   – Ah, não me diga! – interrompi exasperado. Agora que percebi o quanto aquele serviço havia me irritado. Edmundo ficou na defensiva. 
    – Calma aí, cara – ele começou, afastando os cabelos castanho-claros dos olhos. – Sobre os livros de história para a turma do primeiro colegial – completou com veemência que eu havia entrecortado. 
    As palavras “primeiro colegial” chamaram minha atenção. Violeta era do primeiro colegial ou ano... Como eu era bobo! Agitava-me por causa de qualquer coisa que tivesse ligação com Violeta. Perguntei-me com eloquência se estava apaixonado ou obcecado. 
    – É. Isso mesmo – interrompi meus devaneios sobre Violeta. Lembrei-me que Edmundo era “o culpado”, porque supostamente ele era “o ocupado”. Comecei a me irritar com essa mania de adjetivá-lo. Era consequência da raiva por, inconscientemente, sentir inveja dele. 
    – Boa sorte – desejou ele, com ironia patente na voz. Isso me irritou. 
    – Por que você não procurou os livros? – perguntei em tom de voz alto. 
    – Porque eu não faço a mínima ideia de onde estejam – ele respondeu quase imediatamente. 
    – Por isso que a tarefa é chamada de “procurar”, quer dizer que você tinha que procurar. 
    – Eu não poderia “procurar” porque a Sra. Rodrigues mandou você
    – Claro, com a desculpa de que você, supostamente, é muito ocupado. 
    – Mas eu sou – ele respondeu com veemência e ferocidade, só faltou bater a mão no peito como o King Kong. 
    – ‘Té parece! – retruquei com todo sarcasmo possível junto de um sorriso irônico. 
    Houve uma pausa mórbida e constrangedora. Edmundo estava realmente nervoso com o que eu disse. 
    – Ah! – quebrei o silêncio. – Me desculpe – disse ao meu “patrão”, como se esse negócio de ajudante fosse um trabalho remunerado e eu dependesse disso para viver. Eu queria ver Edmundo irritado pelo menos uma vez dentro daquela biblioteca, mas não queria ser o responsável por isso. 
    Outra pausa. 
    – Não se preocupe – disse ele com indiferença. Ficamos em silêncio por mais alguns segundos e então ele disse: – Romeu, na verdade, eu não estava ocupado... 
    – Eu já entendi, Edmundo. Não precisa se explicar – interrompi-o. – Tenho que procurar os livros... Acha que está na sessão de História? 
     – Não tenho certeza – ele respondeu distraído, contudo, pedante. 
    Eu deixei aquela área da biblioteca e segui até o outro extremo, atravessando um labirinto de estantes apinhadas de livros velhos. Naquele colégio não havia nenhum lugar tão rico quanto a biblioteca. Isso era bom para qualquer pessoa, menos para um bibliotecário. Parecia estranho pensar desta forma, mas era verdade. Nem todo bibliotecário é livresco. Edmundo e eu não éramos. Embora eu adorasse gibis de super-heróis. Depois de chegar à sessão de história, fiquei pensando no quanto fui grosseiro com Edmundo. Talvez ele fosse realmente ocupado. Com seu novo celular, é claro!, disse o “diabinho” de mim no meu pensamento. Ele realmente deve estar ocupado, ou há uma razão realmente importante para a Sra. Rodrigues ter incumbido você à tarefa, disse a voz persuasiva do meu eu “anjinho” na minha cabeça. Eu devia parar com isso, ou melhor, parar de assistir os desenhos animados da Walt Disney. 
    Peguei com cuidado o pedaço de papel no bolso de trás da minha jeans. Li o título do livro outra vez o memorizei. Estava na hora de iniciar a busca. 
    O “ servicinho” não parecia tão maçante quanto eu pensava que seria. Não que era legal enfiar a mão e a cara nos buracos mais empoeirados daquela biblioteca mofada, porém era uma grande aventura pelo “conhecimento”. Estava tudo separado por assunto e por ano. Percorri as prateleiras que indicavam os livros de História e as pilhas próximas. Pude ver livros didáticos vencidos, que em minha opinião, eram totalmente desnecessários para aquele lugar. Poderíamos usá-los para manter a fogueira nas festas Juninas. Apesar de estar impressionado com a velharia supérflua, eu não encontrei nenhum sinal dos tais livros. Reli o papel com o título umas três vezes, mesmo já tendo decorado. Eles não estavam em parte alguma. 
    Talvez a Sra. Rodrigues estivesse mesmo caducando. Os livros poderiam ser de sua época no colegial. Livros antigos tinham seu valor, porém talvez estes em especial, não existiam mais. Perguntava-me, medianamente desesperado, o que a Sra. Rodrigues diria ou faria quando eu dissesse que não encontrei os trais livros. 
    Passou-se o tempo da primeira aula, depois, quando atingia metade da segunda, eu desisti. Quando parei, notei que já estava na sessão de matemática. Decidi voltar para ao balcão e pedir ajuda ao Edmundo. Se ele estivesse disposto, é claro. Corri entre as estantes, limpando o leve suor do rosto com as mãos. Queria ter tomado um bom banho quando vi que estava lá, ao lado de Cristine, próximo do balcão, conversando com Edmundo. 
      Violeta. 
    – De quantos livros você precisa? – perguntou Edmundo a Violeta, ridiculamente prestativo como sempre. 
      – Apenas... três. – respondeu Violeta, com sua voz suave e feminina
     Ela usava jeans clara, o uniforme do colégio era justo e seus cabelos negros e ondulados caíam sobre os ombros e continuavam até as costas. Era tão linda, que eu me perguntava se era real. Sua pele clara e seu sorriso me tiravam o fôlego, literalmente. Eu não conseguia descrever o quanto era graciosa. Mas todos os meus sentimentos por ela não era apenas pela beleza, pois havia outras garotas bonitas no colégio e eu nunca me interessei. Era uma espécie de ímã que ela tinha, e que funcionava bem comigo. 
    – Para quem são os outros dois livros? – perguntou Cristine, com certa ironia na voz que deixava claro que só Violeta entendia. Então, antes que Violeta pudesse responder, ela notou minha presença. Exclamou com alegria exagerada: – Romeu! 
    Eu não havia perdido meus hábitos: fiquei constrangido como sempre. Por que Cristine tinha que tão espalhafatosa? Bem, por um lado, eu adorava esse seu jeitinho. Mas na frente de Violeta, era impossível agir novamente. Em um átimo, anotei em minha agenda psíquica que deveria conversar seriamente sobre isso com Cristine, em particular. Simultaneamente, encolhi os ombros e corei as bochechas. Esperei não estar tão vermelho quanto sentia que estava. 
    – Oi, Cris! – falei, torcendo para não sair inaudível. Fixei meus olhos em Cristine: continuava com seu costume de conjuntar arreios em suas vestes, como colares extravagantes e pulseiras com pingentes em forma de frutas. Seus cabelos cacheados como os meus estavam presos em um coque no alto da cabeça. Como ela conseguiu essa façanha?, perguntei em pensamento. Cabelo como o nosso não era uma coisa fácil de manusear. 
      – Para Mariana e Pedro – respondeu Violeta à Cristine, como se eu nunca tivesse aparecido lá. Ela ficou em silêncio por alguns segundos, como se esperasse alguém continuar o diálogo, e então disse com veemência: – Olá, Romeu. 
    Eu hesitei, então respondi com a voz trêmula: 
    – Violeta... Oi. 
    Olhei para seu rosto por alguns segundos e depois percorri para o de Edmundo. Estava com uma expressão desconfiada. Mas eu sabia. De alguma maneira, ele captou no ar o que eu sentia por Violeta. Talvez na minha voz houvesse algo que me entregasse que só outro garoto poderia reconhecer. Ou era pela forma que eu olhava para ela. Droga! 
    Eu não queria que Edmundo soubesse. Ele poderia zombar de mim por isso, ou conquistá-la por pirraça à mim. Sim, ele podia fazer isso, pois nenhuma garota o resistia. Eu via como Cristine o olhava e como ficava boba perto dele, assim como as outras garotas do colégio. Será que Violeta também não resistia aos encantos de Edmundo. Eu não conseguia notar, pois estava ocupado demais apreciando sua beleza. De certa maneira, odiava isso. 
      – Vou pegar os livros – disse Edmundo, com um tom obsequioso e incomum na voz. – Só um minuto. 
     Argh! 
    Eu não estava gostando disso. Sim, estava com ciúme, mesmo que nada tenha acontecido. Mas eu não podia segurá-lo, ele era o “homem femeeiro” do colégio. Ou não? Ele sumiu entre as prateleiras, com uma eficiência rara em nosso cotidiano. Eu olhei para Cristine, na esperança de que ela entendesse o que eu queria dizer. 
     – Bem... – começou ela, me deixando ciente de que havia entendido meu olhar. – Vou dar uma olhada na sessão da ficção. 
    Violeta e eu observamos Cristine caminhar rapidamente até se infiltrar no meio das altas estantes e desaparecer. 
    Ficamos em silêncio por alguns segundos, olhando para todos os lados, menos um para o outro. Estávamos sem graça com a situação. 
    Eu tinha que agir antes que Edmundo voltasse. Ele estragaria tudo, com seu charme que distraia qualquer garota. Cristine já não era mais um problema. Eu sabia que ela não voltaria até algo tivesse acontecido. Anotei em meu bloco de nota psíquico que estava devendo uma para ela. Ou até mais, se eu conseguisse alguma coisa com Violeta. 
    – Então... – comecei. As engrenagens do meu cérebro giravam à todo vapor para produzir algo que eu pudesse falar. – Como vai o clube de dança? 
    Ela olhou para mim. Estava séria e eu estava acionando alarme de emergência dentro da minha cabeça. 
    – Ah, está legal – respondeu ela, com gentileza. – Teremos uma apresentação no mês que vem. Dê uma olhada no mural, lá tem os horários do festival em um cartaz... Espere aí, como sabe que eu sou do clube de dança? 
    Droga, disse em pensamento. O que eu vou dizer? Hum... A verdade, incitei-me. 
    – Cristine comentou em uma conversa... 
    – Ah – Violeta deu um breve sorriso, e revirou os olhos. – Imaginei que ela tivesse te dito. 
    Respirei fundo, discretamente para ela não notar. Uma coragem súbita invadiu meu interior, drenando-se em meu peito.

(Continua...)
terça-feira, 1 de janeiro de 2013 0 comentários

{V} Romeu & Violeta – Utopia Alucinógena



Subitamente despertei como se alguém tivesse jogado um balde de água fria no meu corpo: ofegante e assustado. Sentei, apoiando-me nos braços. Demorei a me acalmar e prestar atenção ao redor. Não era minha cama. 
    A grama sob meu corpo era tão macia que eu achei que fosse sintética. Mas não era, eu sentia o cheiro da natureza que me cercava. Em um dos extremos, uma floresta sombria, composta por árvores altas, cipós espessos e muito lodo, parecia um cenário de teatro. Uma muralha verde. Do outro lado havia um lago, cujos limites eu não enxergava. Suas profundezas eram escuras e lamacentas. Era tão calmo que eu me perguntei se estava congelado. O sol estava fraco, a ponto de eu não precisar procurar uma sombra. O lugar parecia tão inócuo e agradável... 
    Mantive-me sentado. Minhas roupas estavam mais leves do que de costume... Meus olhos se fixaram no infinito horizonte do lago, enquanto eu tentava me lembrar que lugar era esse. Não conseguia. Meus pensamentos estavam dispersos. Os intervalos da minha respiração eram inacreditavelmente longos, como se dependesse da minha vontade e não da minha sobrevivência. Coloquei a mão sobre minha caixa torácica: se enchia e esvaziava lenta e suavemente. Ufa! Estou vivo, pensei. Não era o purgatório. Não desta vez. 
    As dúvidas se extinguiram quase instantaneamente quando ouvi passos leves atrás de minha nuca. Hesitei antes de me virar. Não consegui conter o sorriso se envergava em meu rosto; quase pude ouvir o ranger dos meus músculos se distendendo violentamente. A paisagem começou a ficar realmente interessante: Violeta caminhava em minha direção, sorrindo intimamente para mim. Estava com os pés descalços, usava uma calça branca e uma blusa com alças finas nos ombros. Estava linda, cintilava quando os raios solares encontravam sua pele. 
    É ela mesmo?, me perguntei em pensamento. Minha voz mental tinha a intensidade elevada e ecoava pela minha cabeça, saindo pelos meus ouvidos. Mas isso não era importante, o que importava agora era Violeta, que já estava sentada ao meu lado, me encarando com um sorriso. Eu não disse nada, esperei que ela dissesse... Ficamos assim, apenas estudando um ao outro. 
    Eventualmente, os olhos dela corriam pelo local e voltava para mim. Ela parecia estar familiarizada com o lugar, muito ao contrário de mim. Não alterava o sorriso, como uma pintura sem moldura. Uma brisa momentânea esvoaçou os seus cabelos negros e brilhantes. Eu estava hipnotizado, não olhava para nenhum outro lugar a não ser para ela
    Violeta fixou seus olhos em mim e minhas bochechas coraram. Eu me sentia vivo e eufórico ao lado dela. Senti sua bela anatomia quente mais próxima da minha. Comecei a respirar incontrolavelmente, vívido. Borboletas agitaram suas as em meu estômago... Ela estava tão perto, seus lábios levemente avermelhados... seus olhos castanho-escuros... 
    – Violeta... – consegui balbuciar. 
    As mãos dela seguram meu rosto pelas extremidades; suas unhas estavam sem esmalte. Seus olhos estavam direcionados para apenas um lugar: minha boca. Estremeci cada parte do meu corpo. Ainda me apoiava pelos braços. 
    – Eu... – disse. Foi a única coisa que consegui fazer antes de ela me beijar. Quando seus lábios molhados encostaram o meu, seus olhos já estavam fechados. Pude senti o calor de sua pele, e sua respiração acelerada se espelhar pela superfície oleosa do meu rosto. Fechei meus olhos. 
    Nossos rostos dançavam, acompanhando o movimento cadenciado de nossos lábios. Eu não a compreendi, não sabia o porquê dessa ação de Violeta, apenas segui em seu embalo. Minhas mãos seguraram sua cintura, ao mesmo tempo em que seu corpo pesava sobre o meu. Sucumbi o seu peso e deitei na grama. Ela estava por cima, ainda me beijando. Minhas mãos correram pelo seu corpo, acariciando. Simultaneamente, ela fazia cafuné em cabelo cacheado e volumoso. Era tão bom... 
    Nossos corpos estavam grudados um ao outro. Era mais do que uma sessão de carinho e atos lascivos. Era um momento perfeito. Parecíamos almas gêmeas... Violeta parou de repente. Um som ensurdecedor invadiu nossos ouvidos e nos fez contorcer os rostos. Era eletrônico, alto e excruciante. Ridiculamente familiar para mim... Estava claro em nossas expressões o quanto queríamos que aquilo parasse. O que estava acontecendo?...
    Meus olhos se abriram súbita e involuntariamente. Estava deitado na minha cama, situada em um extremo do meu quarto azul-céu. O rádio despertador soava grotescamente. Era hora de levantar e ir para o colégio. Desliguei o despertador com má vontade. Sentei-me.
    Minha última lembrança era sobre a noite passada, quando fui dormir emburrado por não ter conseguido falar com Violeta no colégio.