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sábado, 19 de janeiro de 2013

Monte-Vista - 1



Era sábado de manhã e Ofélia Terrafino havia decidido não falar com sua mãe pelo resto do dia. Aos gritos, a mulher a acordou cedo e mandou-a aparar a grama do quintal da casa em que viviam. Antes de Ofélia descer para tomar café, sua mãe já havia ido para o Colégio São Francisco, onde fazia trabalhos voluntários para um projeto de recreação à comunidade nos finais de semana. Mas a garota sabia que sua querida mãe, Olga Terrafino, não fazia porque realmente queria ajudar, mas por gostar de bisbilhotar e fofocar a vida dos outros. 
     Seu pai, Antenor Terrafino, administrava um setor de uma empresa local que produzia enchimentos para estofados e derivados. Como todos os finais de semanas dos últimos meses, ele estava trabalhando, alegando que seria bem pago pelo trabalho extra. Sua mulher, apesar de exigente, era ingênua, mas Ofélia não. A verdade era que ninguém suportava passar o final de semana com Olga, muito menos o marido. Ofélia não tinha certeza, mas achava que a fase de ser ranzinza e insatisfeita, chegara mais cedo em sua mãe. 
     Contudo, a relação de Ofélia com Olga era irremediavelmente conturbada. Ela sempre havia sonhado com uma mãe que a levasse ao shopping para fazerem compras, que cozinhassem juntas, que a aconselhasse e fosse sua confidente. Mas não era assim. Olga era implacavelmente egoísta em muitos aspectos e tratava a filha como outra conta que tinha que pagar todo santo mês. Ofélia superou isso aos doze anos de idade, e hoje, com dezesseis, queria estar o mais longe possível daquela mulher horrenda. 
     A relação com seu pai não era, de toda, ruim. Contavam com a sorte para poder ter uma conversa longa, porque simplesmente os horários de suas rotinas não batiam. Talvez, pensava Ofélia, ele era o único motivo de ela ainda estar sob o mesmo teto que Olga. Embora passasse a maior parte do tempo ausente, Antenor era quem apaziguava os conflitos entre a mulher e a filha. 
     Ofélia acreditava ter uma vida normal, quando, aos seis anos de idade, se mudou para Monte-Vista. A cidade ficava no norte do estado de São Paulo e parecia um fim de mundo aos olhos da garota. O lugar era cercado por montanhas forradas de verde e as casas eram padronizadas. As pessoas, além serem ridículas e puxar exageradamente o “r” ao falar, pareciam ter parado no tempo – em todos os sentidos. Dez anos havia se passado e ela ainda não havia se acostumado com toda a, com ela dizia, “cafonice municipal”. A escola era ruim, as pessoas não eram socializáveis, as ruas eram sujas, em suma, tudo era muito rústico para ela. 
     Depois de aparar a grama, Ofélia foi até a cozinha para saciar a sede que o serviço lhe provocara. Em seguida, sentou-se em uma das cadeiras ornamentadas que enfeitavam a fachada da casa, e ficou observando o movimento mórbido da rua. O céu estava azul como miosótis, sem nuvem alguma, adornado com um sol amarelo e quente no canto. Era uma paisagem bonita se olhasse para o horizonte, onde se erguiam montanhas, talvez, nunca escaladas. O pipilar dos pássaros se faziam de música de fundo para a vista. 
    Ofélia Sainte Terrafino era uma garota de valor entre seus colegas de turma. Era tudo que uma garota gordinha com acnes, doenças terminadas em “ite”, asma, falta de coordenação motora, problemas de transpiração nas axilas e de aparelho odontológico queria ser: esbelta, inteligente, bonita, bem relacionada, extrovertida, bem-vestida e que mora em um dos melhores bairros da cidade. E ela adorava tudo isso; adorava seus cabelos dourados que escorriam pelo corpo e seus olhos claros que combinavam com sua pele bronzeada. Fora de sua casa, ela era uma espécie de estrela, como Taylor Momsen ou Demi Lovato. 
     Já fazia quase dez minutos que ela estava naquela cadeira, imóvel, observando a rua. A raiva que estava sentindo pela mãe borbulhava em suas veias. Por que, diabo de peruca loura, você veio me acordar, pensava com eloquência, sabendo que no sábado eu adoro dormir até mais tarde? Em sua humilde opinião de adolescente, acordar cedo para ir ao colégio durante a semana era demais. Como não tinha planos para aquele dia, decidiu que ia fazer uma visita à Melaine, sua suposta melhor amiga, ao invés de ficar assistindo os episódios reprisados de Gossip Girl. Estava passando pelo batente da porta da frente quando ouviu um ruído incomum vindo da rua. Virou-se rapidamente e viu: um conversível, amarelo, passando pela rua. Mas não foi isso que chamou sua atenção, e sim quem o dirigia. Um garoto de cabelos negros que esvoaçavam para trás, de rosto desenhado e cílios grossos. Por um momento, ela achou que estava o vendo em câmera lenta, mas na verdade, o carro que deslizava pela rua em velocidade baixíssima. 
     Flagrado!, pensou com uma voz mental que não era sua, Novo garoto na Cafonice Municipal, bonito e talvez rico. Quem será? 
     O que ela viu foi pouco para justificar a demasiada curiosidade que preencheu seus pensamentos. Subiu para seu quarto correndo e procurou o celular. Pretendia ligar para Melaine, a fim de contar uma novidade quente. 



II 

Marcos Maçãporto ficou aliviado quando colocou o telefone cinza no gancho. Ele trabalhava como garçom no bar e restaurante mais frequentado da cidade. Seu chefe, Nego, como muitos o chamavam, acabara de pedir para trabalhar naquela noite, sob a promessa de pagar o dobro da diária. O movimento seria dobrado, devido a uma importante partida de futebol que seria audiovisualmente transmitida, e muitos passavam ocasiões como esta em lugares que oferecem mordomia, álcool e muita farra. 
     Não era pelo dinheiro extra que Marcos estava satisfeito, tampouco pela festa que aconteceria, e sim pelo fato de que não iria passar a noite toda sozinho em seu apartamento desmanteladamente decorado. Acabara de sair de um relacionamento, que estava prestes a completar quatro anos, e ainda não havia se acostumado a dormir sozinho. Nas últimas três noites ele passou, de olhos abertos, por um pesadelo. Não suportava a ideia de estar sozinho e de seu namoro quase perfeito ter acabado. Fora descartado como uma simples garrafa de vodca. Rolara pela cama sem, de maneira alguma, encontrar uma posição confortável para pegar no sono. A luz da rua projetada no teto mofado do seu pequeno quarto o fazia imaginar formas assustadoras. Marcos sabia – como sabia que sua cafeteira havia queimado – que tudo isso era muito pueril para um marmanjo de 25 anos como ele. 
     Mas era verdade, ele ainda não havia digerido aquela informação. Com quem passaria seus preciosos finais de semana de folga? Como daria as caras em eventos sociais desacompanhado? Só de imaginar entrando em uma casa noturna qualquer sem o anel de compromisso no dedo fazia seu estômago se contorcer dolorosamente. Marcos nem havia mudado os status de relacionamento em seu perfil no Facebook. Estava lá, em sua linha do tempo, “Em um relacionamento sério com–“, como a única recordação “concreta” do que fora uma união marital feliz. 
    Quando terminou de almoçar, Marcos foi ao banheiro e, depois de urinar e lavar as mãos, ficou contemplando seu reflexo no espelho acima do encardido lavabo de porcelana. Não fazia a barba desde o dia em que uma parte do guarda-roupa ficou vazia, tornando-se um lugar para que aranhas pudessem fazer de moradia. Era como um gramado aparado: ralo e áspero. Desde os seus dezesseis anos – quando os pelos pubianos do seu corpo começaram a nascer mais espessos –, nunca deixara um pelo se quer aparecer em seu rosto. Agora, pensava que estava se tornando um Dumbledore tingido de preto. 
     Ele examinou os próprios cabelos: eram negros e as pontas batiam nos ombros. Estava na hora de cortá-los, afinal, ninguém mais pedia para deixá-los cumpridos porque achava sexy. O cabelo longo incomodava e atrapalhava-o em sua rotina diária. Marcos não precisava mais se sacrificar por amor, e, no entanto, não era isso que pensava. Decidiu, depois de se lembrar como eles eram lascivamente puxados e afagados nos momentos mais quentes da noite, que não iria cortá-los. Refrescou o rosto com um pouco de água e se dirigiu ao quarto quadrilátero, cujo dois terços de sua área era ocupada por uma cama muito ampla para o novo solteiro de Monte-Vista. 
     Marcos adormeceu, com o cabelo, braços e pernas esparramados na superfície macia do colchão. Em pouco mais de cinco horas o alarme do seu celular retrógrado dispararia em uma melodia irritante, a fim de acordá-lo a tempo suficiente para poder se arrumar antes de ir trabalhar.



III 

"Então, o que achou da vizinhança, filhão? É o melhor bairro da cidade."
     Daniel Mayson não queria dizer ao seu pai que, desde que pisara naquela cidade, não encontrara nada para gostar. Acabara de sair de seu novo carro, e o pai, Henzo Mayson, o esperava animadíssimo na entrada da garagem – um homem gordo e alto, tinha os cabelos grisalhos sempre bem penteados e andava de roupa social, até nos finais de semana. 
     Havia exatamente um dia que, junto de seu pai, mãe e sua irmã, havia chegado a Monte-Vista. Daniel não estava nem um pouco satisfeito com a mudança repentina. Antes, moravam em uma megalópole no sul do estado e agora, estavam na roça, como pensava ele. Foi seu pai quem começou com a história toda e sua mãe, Amanda Mayson, o apoiou como toda boa esposa deve fazer quando o marido decide fazer alguma coisa que não seja insana. Daniel odiou a ideia e pelo menos Daniela o apoiou. Mas não foi porque tinham um grande elo fraternal, mas porque ela também não queria deixar uma vida para trás. 
     O mais interessante nessa história, foi a desculpa que o Sr. Mayson embolsou para que tudo isso acontecesse. Alegou, com veemência, que por conta da inflação, deveria administrar sua empresa – que ficava justamente em Monte-Vista – de perto; também por suspeitar de desvio de dinheiro. Mas todos na família sabiam que ele estava cansado de ser mais um ricaço em meio a tantos que existiam em São Paulo; e porque era ambicioso e não se contentava com pouco. Em Monte-Vista, tendo a empresa mais rica da cidade, seria um superior, um homem influente, que poderia interferir em questões públicas para que agissem em seu favor. Henzo Mayson tinha a cabeça de um grande chefe de máfia. 
     "Legal" respondeu Daniel ao pai, deixando claro que havia odiado o bairro. 
    "E o que achou do carro?" perguntou Henzo, que manteve o entusiasmo, como se o filho estivesse pulando de alegria. 
     Daniel sabia que Henzo havia lhe dado aquela BMW M3 Conversível amarela como um suborno, para que se animasse com a mudança. Mas não deu muito certo. Embora a família fosse rica, ele era um garoto simples. Queria apenas tirar boas notas no colégio e seguir uma carreira como atleta. Ao contrário da maioria dos garotos da sua idade, ele não se importava com carros, festas, maconha, sexo, bebidas nem pornografia. Tinha planos mais honestos
     Henzo queria que ele, mais tarde, assumisse sua empresa. Isso era muito comum acontecer quando uma família tinha uma velha empresa que foi passando de geração em geração, cada vez mais rica e velha. Para Daniel, isso não era nem um pouco comum, ele queria viajar, conhecer outros países e novas pessoas. Não se imaginava dentro de um escritório, estressado, fazendo a vontade do seu pai. Era como jogar seu talento na lata de lixo. 
     "Pai, eu nem tenho idade para dirigir" respondeu, enquanto atravessavam a garagem em direção à porta que os levaria para o interior da mansão.  "Tenho apenas dezesseis anos, ainda levará muito tempo para eu tirar minha habilitação."
     "Mas o quê que há, filho?" começou Henzo com seu tom de voz na defensiva. Estavam subindo uma escada que levava para a área social da casa. "Foi só uma voltinha. Isso não trará problemas a ninguém."
     Henzo havia ensinado Daniel a dirigir assim que adquiriu pernas grandes o suficiente para alcançar os pedais do carro. Foi apenas um lazer de final de semana entre pai e filho. Daniel adorava dirigir, e havia gostado do carro, mas isso não o faria mudar de ideia sobre a cidade. 
     "O carro é legal" ele admitiu. "Mas eu não vou ficar andando com ele por aí."
   Estavam atravessando um pequeno corredor de paredes brancas enfeitadas com esquisitas pinturas emolduradas. 
     "Você é quem sabe, Dan. O carro é todo seu." respondeu o pai quando finalmente chegaram à sala de estar. 
    Encontraram Amanda sentada no sofá branco. Com seus cabelos negros – de quem Daniel puxou – sobre um rosto bondoso, trajando um vestido de seda coral. Pela idade que tinha, Amanda era uma mulher muito bem conservada. Parecia ser, pelo menos, dez anos mais jovem que o marido. 
     Henzo subiu as escadas que ficava em um extremo da sala e Daniel se sentou ao lado da mãe no espaçoso sofá. 
     "Mãe, eu odeio quando ele faz isso" reclamou Daniel para ela. "Ainda dá tempo de convencermos ele a voltar para nossa antiga vida."
    "Se contente, querido" consolou-o Amanda, afagando os cabelos do garoto. "É definitivo. Não quero ter que discutir isso com você outra vez. Não irá adiantar tentar persuadi-lo, seu pai não mudará de ideia. E eu não estou a fim de fazer outra viagem."
     Daniel fez uma cara feia. 
  "Mãe, e onde eu vou treinar? Eu quero ser atleta. Não poderei ser isso aqui nesse fim de mundo" reclamou ele, suplício. "Não vou trabalhar na empresa idiota do papai."
     Amanda ignorou o comentário sobre a empresa do marido. 
     "Eu andei pesquisando e descobri que aqui em Monte-Vista tem um centro de esportes" começou ela.  "Fica do outro lado da cidade, mas você pode pegar um táxi. Fiquei sabendo que a equipe da Ginástica Olímpica está precisando de bons membros. Daniel, você sabe que é bom e pode entrar para dar uma forcinha. E é sempre bom se destacar."
     "Mãe, não será como antes" respondeu ele, desfazendo-se dos “esforços” de sua mãe. 
   "É claro que não será como antes" Amanda revirou os olhos e deu um leve tapinha no queixo desenhado de Daniel. "Nada será como antes, é uma vida nova."
     Ela não conseguia enganar ninguém com essa falsa animação e Daniel via isso claramente. Amanda também não estava satisfeita com essa “vida nova”, porque na antiga cidade, ela havia se apegado a muitas pessoas e lugares. Amanda era uma mulher muito moderna para aquela cidade e Daniel não soube dizer por que, exatamente, ela não se opôs à mudança. 
     "E os meus amigos?" perguntou Daniel, sabendo a resposta. 
     Amanda suspirou, deixando aparentar, por um momento, o quanto estava cansada de fingir satisfação. 
     "Você vai arranjar novos."



IV 

Era o horário de almoço de Tatiana Bonestone, que estava sentada, inquieta, no refeitório executivo da Mayson Enchimentos & Cia. O lugar, assim como a empresa toda, estava um pouco vazio. Mas mesmo assim, ela ainda podia sentir os poucos homens lançarem-lhe olhares pervertidos. Tatiana sabia exatamente que tipos de pensamentos tinham quando a olhavam e tentava imaginar se nessas cenas imaginárias ela estava vestida de enfermeira ingênua ou policial injusta. Extremamente irritada, pegou sua bolsa e saiu do refeitório, largando a bandeja intocada sobre a mesa. 
     Tatiana, de fato, era uma mulher atraente. Seu corpo tinha curvas nos lugares certos e seus seios eram medianamente fartos, fazendo com que suas roupinhas sociais de trabalho ficassem sensualmente justas. Seu cabelo era tingido de ruivo-escuro, que contrastava bem com sua pele bege. Não precisava de muita maquiagem no rosto, pois tinha uma beleza natural e singular. E como toda mulher, sentia-se poderosa sobre sapatos com saltos altos. 
     Quando chegou à pequena antessala, seu local de trabalho, ainda estava irritada. Não era para estar assim. Havia feito amor com seu marido na noite anterior e  acordou de bom humor. Demétrio Bonestone fora a melhor coisa que aconteceu em sua vida. Se não tivesse se casado com ele, ainda seria apenas uma caipira simplória e invisível naquela cidade ocultada por montanhas. E foi tudo graças à sua beleza e competência em tudo que faz quando tem vontade. 
     Demétrio fora, na época em que ainda eram apenas colegas de trabalho, um dos homens mais cobiçados do setor onde trabalhavam – na mesma empresa que estava agora. Ganhou duas rivais perigosas quando chegou ao Setor 52 da Mayson Enchimentos & Cia exibindo um brilhante anel de seu noivado com o belo e viril Demétrio. Estavam no oitavo ano de casamento e a relação, além de mais intima, continuava como no primeiro ano. Ele elevou-se dentro da empresa e tinha um ótimo salário. Tatiana só trabalhava para manter seu guarda-roupa sempre bem atualizado e abastecido de roupas caras. O casal tinha construído uma vida invejável para muitos em Monte-Vista. 
     Naquele dia, seu humor estava alterado por ter sido obrigada a trabalhar no final de semana. Tatiana era secretária de Antenor Terrafino, chefe administrativo do Setor 52 – moldes para enchimentos. Seu trabalho naquele dia era servir café e levar arquivos para seu querido chefe. Não era como o trabalho no meio da semana. Era muito mais tedioso. Ela poderia estar em casa assistindo filmes com seu marido ou gastando dinheiro em uma loja de roupas. 
     Sentou-se em sua cadeira – cujo enchimento sob o couro fora produzido pela própria empresa –, cruzou as penas e começou a tamborilar os dedos na superfície da mesa. Hoje é sábado e eu não deveria estar aqui, pensava com exasperação, se o Sr. Terrafino quer adiantar seu trabalho, que faça sozinho, porque eu não quero adiantar o meu. Em meio aos seus pensamentos, lembrou-se que, naquela noite, Demétrio iria ao bar Olho da Cobra assistir uma partida de futebol com os amigos. Ele não pode ir sozinho, terá um monte de sirigaitas carentes prontas para dar o bote. Ele não vai sem mim! 
     O telefone sobre sua mesa tocou e ela atendeu imediatamente, apertando o fone com toda força que tinha. 
     "Pronto, Sr. Terrafino" disse com sua voz simpática de secretária atenciosa. "Claro que posso... Com açúcar ou adoçante? Tudo bem."
     Seu querido chefe havia lhe pedido um café. Ela levantou decidida e foi até a máquina de café no corredor. Preparou uma bandeja convidativa, com biscoitinhos de cortesia. Atravessou a antessala e bateu na porta que indicava em letras grandes: Antenor Terrafino
     "Entre" disse a voz abafada do chefe administrativo do Setor 52. 
     Tatiana girou a maçaneta com a mão livre e entrou na ampla sala executiva e bem iluminada. As paredes eram cobertas por estantes com livros, fragmentos de enchimentos em vidros e algumas fotografias em porta-retratos. A mesa do Sr. Terrafino ficava próxima à janela, do modo em que ele ficava de costas para o céu lá fora. Anternor, na opinião de Tatiana, era mais bonito que seu marido. Tinha o cabelo castanho-claro e um rosto ainda jovem, como se tivesse vinte e poucos anos. Ela sabia que ele malhava, a camisa marcava seus músculos quando ele fazia movimentos bruscos. Muito ao contrário de Demétrio que, se continuasse a se alimentar irregularmente, em poucos anos ele teria o corpo do Homer Simpson. 
     Ela caminhou até a ampla mesa e deixou a bandeja em um espaço desocupado. 
     "Obrigado, Taty" agradeceu ele sem tirar os olhos da tela do computador portátil. Ela odiava que ele a chamasse assim. Demétrio usava esse apelido em seus momentos íntimos mais prazerosos (Isso! Vai, Taty!). 
    Ela respirou fundo. 
    "Por nada, Sr. Terrafino" disse sorrindo, esticando exageradamente seus lábios carnudos. "Espero que arranje uma secretária que seja tão dedicada assim, porque eu me demito."




As paredes do quarto de Cassilda Gonçalo eram cobertas por pôsteres de astros e estrelas do pop, como se fosse uma pequena galeria. Uma coleção que levou anos para crescer. As suas favoritas eram as do Michael Jackson – que descanse em paz – em suas famosas posições. Havia muitos CDs e livros que gostava numa estante. Naquele momento, acabara de começar a tocar “Pulsos”, de Pitty. 
      E um dia se atreveu a olhar pro alto. Tinha o céu, mas não era azul, entoava a voz feminina do rádio, acompanhada por uma batida de rock envolvente. 
     Estava a apenas de sutiã e calcinha – um conjunto rosa –, sendo observada pelo seu namorado Igor Velatiner. Estava prestes a subir na pequena balança que comprara no mês passado, e Igor estava lá para apoiá-la. Começaram a namorar quando tinham catorze anos, e agora, com dezesseis, já tinham atingido um nível de intimidade avançado. Igor piscou para ela, incentivando-a a ir em frente. 
     No cansaço de tentar, quis desistir. Se é coragem eu não sei.
    Cassilda ficou de costas para o namorado e subiu na balança, olhando para baixo. Afastou os cabelos quimicamente alisados do rosto e os prendeu atrás da orelha. Ficou contemplando a telinha digital um pouco adiante de seus pés, que indicava o peso. Ah, droga, setenta e seis?! Ela não acreditava. Desceu da balança e se dirigiu ao espelho, alto e largo o suficiente para conseguir seu corpo inteiro, e Igor, observando-a apreensivo, sentado em sua cama de lençóis vermelho. Cassilda era uma garota bonita, um pouco forte, e nem parecia ter aquele peso. Tinha um corpo atlético, coxas grossas. Ela não estava nem um pouco satisfeita com seu peso; todo o sacrifício que havia feito havia sido em vão. 
     Tenta achar que não é assim tão mau, exercita a paciência. Guarda os pulsos pro final. Saída de emergência.
     A sua vida era como ser uma passageira em um trem passando por um longo túnel escuro: todos sabiam que ela estava lá, mas ninguém, de fato, a via. Não sabia se era por ser negra ou por não ser carismática como, por exemplo, Ofélia Terrafino, uma garota popular do colégio onde estudava – Colégio São Francisco. (Particularmente, Cassilda achava que “Ofélia” era nome para se dar a vacas. A vaquinha Ofélia e sua amiga galinha Teresa.) Era uma garota estudiosa, tinha boas notas, mas não se destacava. Já havia tentando praticar alguns esportes, mas não tinha habilidade para nenhum. 
     Ela morava em Monte-Vista desde que nasceu e, secretamente, adorava a cidade. As pessoas que eram incomuns. Eram muito seletivas. Muitas vezes, ela pensava que sua pequena revolta com a sociedade se devia ao fato de ser negra. A injustiça à raça estava no mundo inteiro, e um negro insatisfeito com isso não era novidade para ninguém. Mas ela achava que era muito injustiçada. Cassilda tinha seus pais como o exemplo de sua vida. Conseguiram superar o racismo e a hipocrisia das pessoas. Tornaram-se bem-sucedidos, e muito influentes na cidade. Moravam em um dos melhores bairros de Monte-Vista: Casa Verde – que só ficava atrás do Ermito Plazz, o dos ricaços. Ela sabia que teria que superar a injustiça da sociedade também. 
      Saída de emergência!
    Mas agora, ela estava preocupada com seu corpo. Já sofria por ser negra e não queria sofrer por ser gorda também. Era tudo que a sociedade reprimia. Não podia, de jeito nenhum! As coisas se tornariam mais difíceis. E seu namorado, como ficaria ao lado de uma negra gorda? Igor era perfeito aos seus olhos; tinha aparência de um autêntico alemão – pele e olhos claros, cabelos louros. Quando começaram a se encontrar às escondidas, ela nem acreditava que estava tendo um caso com dos garotos mais bonitos do colégio. Ofélia Terrafino ficara boquiaberta quando a vira de mãos dadas com Igor Velatiner. Era do conhecimento geral que a famosa Ofélia já havia cobiçado o garoto, porque o considerava um dos garotos mais bonitos daquele colégio. 
     Igor não era só um rostinho bonito e popular. Era atleta, era da equipe principal de ginástica olímpica da cidade. Seu corpo estava em desenvolvimento, mas tinhas músculos definidos; era forte o suficiente para que as camisetas ficassem justas. Cassilda achava que iria enlouquecer quando o via usando camisetas cavadas. Por isso, ela não queria ser feia, gorda e ter problemas com transpiração nas axilas. Achava tinha que ser esbelta como Ofélia Terrafino. Mas com aquele peso? 
      E um dia desistiu., quis terminar. Só mais um gole e duas linhas horizontais.
     Cassilda olhava apreensiva para seu reflexo no espelho. Igor continuava a observá-la, meio preocupado. Então, com a velocidade de um ginasta, ele correu até ela agarrou-a por trás, beijando seu pescoço. 
     "Por que está tão preocupada?" perguntou ele, entrelaçando as mãos na cintura de Cassilda. Ela podia sentir seu corpo torneado pressionando suas costas. "É o seu peso? Você está ótima."
     Preto e branco. Cassilda olhava atentamente o espelho: um belo casal, mas a garota gorda estava infeliz. Parecia um relacionamento “se”. Se ela engordasse um quilo a mais, ele romperia a relação; se ela não atingisse o peso ideal; se ela continuasse feia... Se, se, se... 
       Sem a menor pressa, calculadamente. Depois do erro a redenção.
     "Não é meu peso" respondeu ela, depois de uma pausa considerável. "É nosso namoro. "
       Tenta achar que não é assim tão mal, exercita a paciência. 
     "Nosso namoro?" perguntou Igor, franzindo a sobrancelhas quase invisíveis de tão claras. 
      Guarde os pulsos pro final.
     "É," respondeu ela. "Ele acaba aqui."
      Saída de emergência!

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