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domingo, 19 de agosto de 2012

Grande noite - Parte I



    A porta de madeira fina abafa a agitação no corredor. Passos apressados para todos os lados, o congestionamento de araras e o ranger agudo de suas rodinhas e,  a tradicional contagem regressiva apressando a preparação. Nada mais e nada menos que o normal para um noite como esta. Parece que não há importância maior do que o melhor empenho no espetáculo. Isso também é normal para uma noite como esta.
    Volto a atenção à mim. Me aproximo do cabide retirando o roupão e pendurando-o nele. Despido, começo a vestir o conjunto social de vestes propostas a mim. Belo terno azul marinho. Me visto lentamente e me encanto com o cheiro bom que esse tecido tem. E esse tamanho, está perfeito. Me olho no grande espelho que está em uma parede no extremo do quarto. Respiro lentamente enquanto admiro minha elegância. Diariamente visto roupas do mesmo porte, mas estou espantado como estou elegante com esta. Sorrio para mim mesmo no espelho.
    Me sento na banqueta com forro de veludo posta à frente de uma mesa. Há um espelho rodeado de lâmpadas acesas embutido na mesa. Me olho novamente no espelho e vejo como minha face e meus cabelos estão disformes à minha roupa. O.k., digo o acrônimo popular a mim mesmo. Começo a passar em minha face inúmeros produtos desnecessários para que minha pele fique lisa, sem manchas e brilho. Odeio usar, mas o efeito é ótimo. Enterro uma de minhas mãos em um pote de gel posto sobre a mesa, depois levo uma quantidade excessiva para meus cabelos. Espalho sobre meus cabelos com a ajuda do espelho para que não fique excesso em canto algum. Pego a escova de pentear sobre a mesa, e faço um peteado tradicional com ela: cabelos deitados para trás com um lustroso topete.
    Pouso a escova de pentear quando o produtor entra pela porta avisando que só faltam cinco minutos.  Ainda não me acostumei com essa invasão repentina. Dou uma última ajeitada na gravata borboleta preta e me dirijo até a porta. Ela permaneceu aberta depois que o produtor entrou e saiu sem olhar para trás. Paro na frente da porta e olho fixamente para as iniciais emolduradas nela: P. S. Sinto orgulho, e prossigo fechando a porta.
    Me embalo pelo caos do corredor, desviando das araras e evitando que outras pessoas trombem um mim. A temperatura do ambiente está baixa, mas a do meu corpo, pode ser considerada uma febre por conta de nervosismo. Eu sei, deveria ter superado isso por conta de tudo que passei e de todo trabalho que tive para estar aqui. Mas isso sempre acontece, pois sei que hoje é o meu momento. Entro na sala que dá origem os "mi, mi, mi, mi, mi, mis" que ouvi de longe no corredor.
    Contendo uma diversidade de instrumentos musicais clássicos e partes de cenários pintados a mão nos cantos, a sala acolhe um grupo de jovens rodeados em um piano negro, os responsáveis pelos "Mi, mi, mi, mi, mi, mis" uníssonos. Aquecimento vocal, lá vou eu.
    Em três minutos fiz o aquecimento e saí da sala. Deslizo pelos corredores até os bastidores do palco. Há pessoas tão elegantes quanto eu. Elas sorriem para mim quando passo, eu tento sorrir de volta. Sou arrastado pelo produtor entre pessoas, cenários desmontados; ele me leva até um lugar frio, pouco iluminado, aparentemente vazio. Me posiciona e sai apressadamente pelo assoalho de madeira. Estou no centro do palco.

(Continua...)

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